Artigo publicado na Folha de
São Paulo
David Oliveira de Souza
É CONSENSO
para organizações internacionais como Unicef e FAO (Fundo das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação) que a produção mundial de alimentos é mais que
suficiente para cobrir as necessidades terrestres. Porém, durante a leitura
deste artigo, 60 crianças no planeta morrerão de desnutrição e, ao fim do dia,
serão quase 20 mil. Na Etiópia, onde trabalho em uma emergência nutricional com
Médicos Sem Fronteiras (MSF), todos os dias me pergunto por onde anda a mão
invisível e mágica do mercado global, o melhor regulador da economia. Nenhuma
das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la.
Em Kambata,
no sul da Etiópia, fica bem clara uma das lógicas geradoras de fome.Dedicadas à
produção de gengibre para o mercado externo, muitas famílias de pequenos
produtores deixaram de produzir comida para consumo próprio, imaginando que,
com a venda da colheita, poderiam comprar os insumos necessários a seu
sustento. O preço do gengibre, contudo, ficou abaixo do esperado, o custo dos
alimentos subiu, agravado pela crise mundial e pelo clima local e, como
resultado, a fome chegou.
Crise
semelhante se deu no Níger, em 2005, onde à insuficiente produção de
subsistência uniram-se a seca e os ataques de gafanhotos à lavoura. Nesse país,
onde MSF já cuidou de mais de 500 mil crianças desnutridas, ao mesmo porto de
onde partiam navios abarrotados de cereais para exportação chegavam
carregamentos de ajuda alimentar para a faminta população local.
Embora o
aumento do custo dos alimentos seja um importante fator de crise, é preciso
lembrar que ele apenas agrava uma situação crônica. Segundo a OMS (Organização
Mundial da Saúde), a desnutrição representa 10% de todas as doenças e já vem
sendo há muito tempo negligenciada pela comunidade internacional. De acordo com
a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, iniciativa de MSF, apenas 3%
dos 20 milhões de crianças com desnutrição severa recebem o tratamento recomendado
pela ONU.
Quando a
escassez de comida é intensa, as famílias reduzem o número de refeições e
precisam abrir mão de bens essenciais, como gado e até a própria casa. Se a
situação piora, as estruturas da comunidade entram em colapso, aumenta a
violência, iniciam-se grandes ondas migratórias e os indivíduos menos
valorizados na cadeia produtiva, como meninas e órfãos, tendem à
marginalização. O momento final e mais grave ocorre quando há falta absoluta de
alimentos, afetando uma grande população por um longo período. Nesse caso, o
cenário é desolador, e a mortalidade, altíssima. Em um acelerado processo de
degradação humana, parte de um povo vai sendo consumido e sua descendência
poderá ter a capacidade cognitiva prejudicada pela falta de acesso aos nutrientes
adequados.
Aqui em
Kambata, diariamente mais de 3.000 pessoas procuram nossos centros de nutrição.
Há dias que precisamos interromper as atividades, com medo de perder o controle
da multidão desesperada. Alguns pacientes estão tão fracos que nem conseguem
engolir.
É difícil
descrever a aparência da fome. A criança desnutrida é triste, parada, tem cara
de velhinho e, algumas, por causa da carência protéica, ficam com as pernas e o
rosto inchados. Mesmo assim, é possível salvar muitas vidas e, especialmente no
caso das crianças, após duas semanas de tratamento, o rosto muda tanto que
quase não dá para reconhecer.
Duas
identidades me são evocadas no trabalho na Etiópia. A de médico e a de
brasileiro. A de médico me faz lembrar que é muitas vezes nos centros de saúde
que fenômenos como a fome e a violência mostram sua cara mais feia e que,
embora sejam essenciais programas de desenvolvimento para evitar as crises,
eles não devem ser feitos em detrimento de respostas emergenciais necessárias.
A de cidadão brasileiro me faz desejar que nosso país, que tem produzido
algumas tecnologias bem-sucedidas de combate à pobreza e à fome, seja mais
proativo em sua política de cooperação com outras nações do Sul. O Brasil que
precisa de ajuda também tem condições de ajudar.
Há alguns
dias, perdemos Mamushe, uma menina com nove anos, desnutrição severa e ares de
princesa etíope. Sempre que Mamushe me perguntava onde era o Brasil, eu
respondia: “Longe”. Na madrugada em que tentei reanimá-la, o corpo fraquinho
não resistiu e se foi. Ao ouvir o pranto de sua mãe, lembrei-me de uma frase
proferida pelo escritor moçambicano Mia Couto na ocasião do tsunami: “Nunca é
longe o lugar de onde nos chega um grito de apelo. O sofrimento atingiu também
a nós. O vosso luto é o nosso luto”.
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