segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Doença de Chagas: É hora de romper o silêncio



Artigo publicado na Folha de São Paulo

David Oliveira de Souza

Há 100 anos, o médico brasileiro Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas realizou feito científico inédito: descreveu sozinho uma enfermidade, seu parasita causador e o inseto que a transmitia. Se a descoberta da doença de Chagas é motivo de orgulho, os pacientes ainda têm pouco para comemorar. Um século depois, a doença ainda é uma tragédia silenciosa que atinge milhões de pessoas na América Latina.

O conhecimento da dinâmica da doença de Chagas é muito importante, pois ajuda a compreender o que se passa com outras enfermidades também negligenciadas. Chagas, malária, leishmaniose e tuberculose, para citar só algumas, têm em comum o fato de atingirem, sobretudo os pobres, receberem pouquíssimas inovações tecnológicas e partilharem o amplo desinteresse da indústria farmacêutica. Os pacientes dessas patologias não representam um mercado atraente para o consumo de novos medicamentos ou testes diagnósticos.

Estima-se que 3 milhões de brasileiros estejam infectados pelo Trypanossoma cruzi, o protozoário causador da doença. Muitos deles desconhecem completamente sua condição de saúde. É que a doença de Chagas é silenciosa e costuma se manifestar muitos anos após o momento em que o parasita invade o organismo. Frequentemente, quando o tratamento já não é mais possível.

Um terço das pessoas infectadas desenvolverá a doença. Muitas delas vivem hoje nas periferias dos centros urbanos, mas, na juventude, dormiam em casas de taipa em cujas frestas se abrigava o barbeiro. Podem também ter se infectado por transfusão sanguínea, alimentos contaminados ou dentro do útero de suas mães. Receberão o diagnóstico num momento qualquer da vida, quando forem doar sangue, fazer acompanhamento pré-natal ou desmaiarem com arritmia cardíaca na via pública. Algumas precisarão de marca-passo e até de transplante cardíaco, outras morrerão sem sequer saber o nome da doença que tinham.

Em 2006, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde o certificado internacional reconhecendo que a transmissão da doença pelo barbeiro estava eliminada em território nacional. Uma conquista necessária, mas não suficiente. Nesse momento, muitas pessoas já estavam infectadas - para elas, a prevenção não resolve. É necessário acesso a diagnóstico e tratamento.

Recentemente, visitamos dois pacientes que são membros da associação de pessoas vivendo com doença de Chagas ligada ao hospital Dante Pazzanese. Os irmãos Mildo e Dildo nos receberam em sua casa, pegaram uma foto bonita de sua família reunida e apontaram o pai, a mãe e vários irmãos. Com tristeza, informaram que quase todos morreram com Chagas. Muitas doenças negligenciadas devastam uma mesma família não por sua identidade genética, mas por sua condição social compartilhada.

Hoje, dia do aniversário de Carlos Chagas e ano do centenário de seu importante descobrimento, a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) lança a campanha internacional "Doença de Chagas: é hora de romper o silêncio". MSF apela para que governos parem de considerar pacientes de Chagas como casos perdidos e procurem saber onde estão essas pessoas que adoecem em silêncio. Elas precisam de diagnóstico e talvez de tratamento. MSF trabalha em projetos de luta contra essa doença desde de 1999.

Atualmente, na Bolívia, o país com maior prevalência da doença, há mais estimativas que estatísticas precisas sobre o número de pessoas vivendo com Chagas. O curso silencioso da doença não é justificativa aceitável para esse desconhecimento. A infecção pelo vírus HIV também cursa de forma silenciosa até que apareçam as primeiras infecções oportunistas, mas sabemos com bem mais acuidade o número de soropositivos. Ademais, desde o descobrimento da Aids, há poucas décadas, muito já se avançou em termos de técnicas diagnósticas e novos medicamentos.

No caso de Chagas, os dois únicos medicamentos disponíveis são os mesmos há 30 anos e têm efeitos colaterais potencialmente graves. Os testes rápidos são limitados e o diagnóstico depende de estrutura laboratorial complexa, frequentemente inacessível para muitas regiões.

Alguns fatos alimentam a esperança de transformação no contexto de negligência vivido pelos pacientes com Chagas. Instituições de excelência, como a Fiocruz e a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), investem recursos relevantes na pesquisa da doença e na busca por melhores medicamentos. Associações de pacientes têm se formado no Brasil e em vários países, buscando ampliar a visibilidade desse mal silencioso.

Apesar dos pequenos avanços, a frase proferida por Carlos Chagas no distante ano de 1911 continua atualíssima: "A doença de Chagas é um problema de Estado a exigir enérgica ação governamental".

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