Cem Anos
de negligência
No
centenário da descoberta de Carlos Chagas, pouco se
pode comemorar no combate ao mal que ainda se espalha por regiões pobres do planeta
Artigo publicado na Scientific American Brasil por David Oliveira de Souza e
Gabriela Costa Chaves
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Fale dessa doença e terá todos contra você", alertava o cientista Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas, referindo-se à
doença por ele descoberta em 1909.
Talvez o médico já intuísse que
a doença de Chagas entraria para o grupo de enfermidades esquecidas e negligenciadas, por causa da estreita relação da patologia
com a pobreza e a vida rural.
"Esta doença é um problema de
Estado a exigir enérgica ação governamental", advertia o cientista já em 1911.
Carlos Chagas estava certo. Um século depois, estima-se a existência de 13 milhões
de pessoas que desconhecem estar
infectadas pelo Trypanosoma cruzi. Podem morrer em silêncio, sem ajuda e sem saber a causa do mal. Se antes a
doença de Chagas estava restrita a
áreas endêmicas das Américas,
agora, com o aumento da mobilidade populacional, espalha-se pelo planeta.
Os dois únicos
medicamentos disponíveis para o
tratamento etiológico são os mesmos há quase 40
anos, com indicação limitada a algumas formas
da doença e efeitos adversos potencialmente graves. Há testes diagnósticos, mas ainda limitados e não amplamente acessíveis. Segundo consenso de recente encontro promovido pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) entre universidades da América Latina, a maioria das escolas médicas
dedica pouquíssimas horas ao ensino da doença de Chagas e muitos clínicos nem mesmo a incluem
em seus diagnósticos diferenciais. A descoberta da doença de Chagas faz cem anos, mas
ainda há
pouco para comemorar.
A organização Médicos Sem
Fronteiras (MSF) atende a pacientes com Chagas desde 1999. Projetos foram montados
em Honduras, Guatemala, Nicarágua e Bolívia, onde prosseguimos até hoje em áreas urbanas.
Os principais pilares da abordagem da doença são: informação, controle, diagnóstico e
tratamento.
A falta de informação é um problema
grave. A população
até conhece o barbeiro, mas sabe pouco sobre a doença. Por isso, procuramos
usar os meios disponíveis
corno rádio, teatro, clínicas móveis e treinamentos para ensinar a correlação
entre o contato
com o inseto e as possibilidades de adoecer.
Diagnóstico Detalhado
De pouco adianta informação sem controle. As equipes
de MSF na Bolívia, que seguem de casa em casa procurando as vinchucas (barbeiro, em espanhol) e seus ninhos, aproveitam para
indicar reformas na
casa, como frestas a fechar e galinheiros a limpar, já que são locais
onde os barbeiros costumam viver. Outras equipes dedetizam as casas e retornam de tempos
em tempos para checar se não houve reinfestação.
O diagnóstico de Chagas não é simples. Uma pequena amostra de
sangue é extraída do dedo dos pacientes e colocada no kit de exame rápido para triagem. Espera-se
15 minutos e, se o resultado for positivo, novas amostras de sangue são
coletadas e enviadas
para testes mais detalhados em laboratório. Até dezembro de 2008 já tínhamos
realizado mais de 60 mil testes em crianças menores de 18 anos. Mais de 3
mil estavam infectadas.
De forma geral, os governos têm priorizado as ações de
prevenção às de diagnóstico e tratamento da doença. O desenvolvimento de
novos fármacos e
métodos diagnósticos tampouco é considerado atraente pela indústria
farmacêutica, pois se trata de uma população de países em desenvolvimento, com baixo
poder aquisitivo.
Sintomas Genéricos
Apesar de estarem disponíveis apenas dois medicamentos, o
benznidazol e o nifurtimox, a organização MSF tem demonstrado ser possível tratar a doença de
Chagas. Em nossos projetos, finalizou-se com êxito o tratamento de
jovens até 18 anos
em 90% dos casos. Isso é possível graças a acompanhamentos semanais feitos pela
equipe de MSF
com os pacientes e à atuação de nossas clínicas móveis em áreas remotas. A
partir de 2008, a
organização também passou a tratar adultos de até 50 anos.
Clinicamente, a doença de Chagas pode
se classificar
em fases aguda e crônica - esta última da forma indeterminada ou clínica. É
difícil diagnosticar os casos de Chagas na fase aguda, que ocorre logo após a infecção,
pois os sintomas são muito leves e genéricos ou não existem. O
diagnóstico fica mais fácil quando estão presentes os clássicos sinais de Romana (edema nas
pálpebras de um dos olhos) ou o chagoma subcutâneo (lesão endurecida na pele), ambos indicando
sítios de inoculação recente do parasita no organismo. Pacientes agudos até podem apresentar
alterações neurológicas e cardiovasculares graves, mas
são muito raras.
Na fase crônica, forma
indeterminada, a pessoa já se infectou há algum tempo e pode transmitir a doença por
diversos meios. A presença do parasita é comprovada pelo exame de sorologia,
mas este é o
único achado. O paciente não tem queixas cardíacas ou digestivas, nem
alterações na radiografia ou no eletrocardiograma. Muitos desses indivíduos, por não
se sentirem doentes, ficarão sem diagnóstico. Estima-se que um terço das
pessoas infectadas com o Trypanosoma cruzi apresentará complicações clínicas em algum momento da vida e evoluirá da forma indeterminada para a forma clínica. Os sintomas costumam aparecer após dez a 20 anos de infecção silenciosa.
Na forma clínica da
fase crônica, quando há doença visível,
podem aparecer sinais e sintomas
cardíacos, digestivos ou neurológicos.
Há lesões irreversíveis, afetando
órgãos internos, como coração, esôfago
e intestinos, além do sistema
nervoso periférico. Os
sintomas que sugerem ao médico o diagnóstico de Chagas podem ser genéricos - de palpitações e desmaios a falta de ar,
de dificuldade para engolir a constipação intestinal. Por isso é tão importante
que a doença de Chagas esteja presente na formulação dos diagnósticos diferenciais dos profissionais de saúde.
Picando
o Rosto
Carlos Chagas iniciou seus estudos de
medicina em abril de 1887, em um momento de
grande efervescência no Rio de
Janeiro. Várias epidemias na zona
portuária e no centro da cidade causavam prejuízos
à economia, muito concentrada na exportação
de produtos agrícolas. Na Europa havia grande interesse nos estudos da
medicina tropical, sobretudo na busca por
melhor entender as doenças encontradas nas colônias da África, como a malária e a tripanossomíase africana, também conhecida como doença do sono.
Em 1907, Carlos Chagas foi
convidado por Oswaldo Cruz, Diretor-Geral de
Saúde
Pública, para
controlar uma epidemia de malária, que vinha matando muitos trabalhadores da
construção
de uma ferrovia em Lassance, Minas Gerais. Curioso pelo estudo dos insetos e
protozoários enquanto
atuava na malária, Chagas identificou no sangue de um sagüi um protozoário do
gênero Trypanosoma. Nos dias
seguintes, um dos trabalhadores da ferrovia mostrou ao cientista um hemíptero que se
alimentava de sangue e podia ser encontrado em várias choupanas da
área. O inseto era chamado de barbeiro
pela população porque costumava picar o
rosto das pessoas durante o sono. O
barbeiro podia ser facilmente encontrado
nas frestas das paredes das casas de barro e vivia em íntimo contato com as famílias. Em suas investigações, Chagas encontrou no intestino do
inseto o mesmo protozoário que achara no sagüi e viria a ser denominado Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre e amigo Oswaldo
Cruz.
Percebendo a proximidade do barbeiro com domicílios humanos e sua capacidade de
transmitir o Trypanosoma a
mamíferos vertebrados, como o sagüi, Chagas
decidiu realizar exames sistemáticos no sangue de moradores e de animais domésticos da região. Em abril de 1909, há
cem anos, portanto, foi identificado o
primeiro caso da doença de Chagas
em humanos. A menina Berenice, de 2
anos, tinha febre e o Trypanosoma cruzi no sangue. Mais
tarde se registrariam
muitos outros casos agudos da infecção, com grande repercussão internacional. O feito
de Carlos Chagas foi único na história da medicina, pois em pouco tempo
e pelo mesmo
cientista foram descritos a doença, o seu vetor transmissor e o parasita
infectante.
Basta passar um dia no movimentado
ambulatório de doença de Chagas da
Universidade de Pernambuco (Procape-UPE) para ter idéia do quanto esta doença é
atual e negligenciada. Atual pelo grande número de pessoas que ainda se
descobrem infectadas
tardiamente, apenas quando surgem os sintomas. Negligenciada porque, embora o
conhecimento
sobre a doença tenha evoluído ao longo desses cem anos, isso não se traduziu
em ferramentas
essenciais para o enfrentamento da doença.
Numa visita de MSF ao Recife, uma
pista para ajudar a explicar essa situação nos foi dada por Manoel
Nascimento, presidente da associação de pessoas vivendo com doença de Chagas ligada ao hospital da universidade. Ele explica que os
pacientes pernambucanos "costumam acordar nas primeiras horas da madrugada para conseguir chegar ao Recife a tempo. Até desmaios já aconteceram na sala de espera por causa de fome".
Uma das principais funções da associação é apoiar
pacientes mais pobres, fornecendo inclusive alimentação, transporte e medicamentos. Na fase crônica, às vezes se torna necessário o uso
diário de três ou quatro
medicamentos, cuja aquisição pelos
pacientes pode ser inviável. Por causa desse
contexto de vulnerabilidade, os movimentos de criação de associações como em Recife, São Paulo e Campinas vêm se multiplicando cada vez mais e as redes entre elas vêm se desenvolvendo.
Para MSF, é prioritário
apoiar essas iniciativas. Assim como no caso da AIDS, exemplo de sucesso em muitos locais, a atuação da
sociedade civil pode representar um poderoso
capital de transformação da realidade. Em relação a Chagas, a situação é
ainda mais desafiadora, pois o investimento é muito menor. É o próprio Manoel que formula uma hipótese
para explicar essa diferença: "A AIDS pega pobre e pega rico, mas Chagas quase só é doença de
pobre".
Doença Globalizada
Ao longo dos últimos dez anos
de experiência de MSF com doença de Chagas, pudemos perceber ainda a
característica familiar da doença, resultado da exposição comum aos ambientes
de risco. Maria Rodrigues, também do ambulatório de Chagas de Pernambuco, diz
ter cinco dos 11 irmãos com doença de Chagas. Seus pais morreram por um
"problema do coração". Como a
família se dispersou, alguns irmãos são
atendidos por serviços médicos de outras cidades do Brasil. Esse também é o
caso de alguns pacientes bolivianos
acompanhados pelo ambulatório de
Chagas do Hospital Dante Pazzanese em
São Paulo, mas infectados em suas cidades de origem na Bolívia. Contextos assim podem ser vistos nos Estados Unidos, Austrália, Japão e Europa, em virtude de migração e mobilidade de pessoas,
tornando a doença de Chagas globalizada.
Uma das principais razões da proximidade
física do
barbeiro com o homem foi a invasão de espaços ecológicos antes inabitados.
Com a derrubada das florestas,
reduziu-se a oferta de alimentos para os
insetos, que se deslocaram para regiões
habitadas onde também há criações de animais.
Os barbeiros procuram procriar e viver nas frestas de moradias rurais,
geralmente feitas de taipa, com
telhados de piaçava ou palha, sob colchões,
em pilhas de lenha, em locais úmidos e mal
iluminados. Adquirem o Trypanosoma
ao sugarem o sangue
de mamíferos silvestres, como gambás, roedores ou o próprio homem. Durante o dia, costumam permanecer escondidos, saindo à noite em busca de alimento. Sua
picada é pouco dolorosa e, por isso, não
encontram problemas para se alimentar. Mas
não é a picada do barbeiro que
transmite o parasita. Depois de se alimentar, o barbeiro defeca e como há uma leve ardência ou coceira no local afetado, o ato de cocar introduz
os tripanossomídeos das fezes do inseto no organismo, causando assim a infecção.
O controle do vetor transmissor é um elemento essencial no combate à doença de
Chagas. Pode ser feito por meio do uso
de inseticidas nas residências,
da manutenção de uma higiene adequada nas casas e principalmente com a construção de casas menos atraentes ao barbeiro. Todas essas medidas devem ter como pano de fundo o respeito às pessoas, utilizando-se inseticidas de baixa
toxicidade e adequando as novas casas
ao padrão cultural daquelas
populações.
No caso do Brasil, em junho de 2006 a OPAS concedeu
ao Ministério da Saúde a
Certificação Internacional de
Eliminação da Transmissão da Doença
de Chagas pelo Triatoma infestans, principal
vetor das áreas endêmicas no país. É uma boa
notícia, mas seria um equívoco achar que a doença se manterá controlada apenas
com a eliminação da transmissão por
um tipo de vetor. Eliminação
significa uma interrupção momentânea da
transmissão, diferente da erradicação - que seria a interrupção definitiva. Por isso, se não houver ações de vigilância entomológica e epidemiológica
continuadas no país, a transmissão pode voltar
a ser um problema.
Não é só a transmissão por insetos que demanda controle. A doença de Chagas também
pode ser transmitida de várias
formas: por via oral, por meio de
alimentos contaminados; por acidentes em que
haja contato de mucosas com material infectado;
por transmissão vertical ao feto durante a gravidez e por transfusão sanguínea.
Cada uma dessas formas de transmissão
demanda medidas de controle
específicas, como o processamento
adequado de alimentos, uso de luvas em procedimentos
de risco, triagem da gestante no pré-natal
e de doadores de sangue na transfusão. A
transmissão por via oral merece especial atenção, pois tem sido cada vez mais observada e já foi identificada como responsável pela ocorrência
de diversos surtos no Brasil. Aqui, relacionou-se a transmissão ao consumo de açaí na região amazônica, mas houve também casos associados ao caldo de cana e a outros alimentos em diversas
áreas. A transmissão oral não está
relacionada ao alimento ingerido,
mas a seu processamento inadequado.
Por isso, não há problema em consumir o açaí ou caldo de cana processados de
forma segura
para o consumidor.
Apesar do relativo êxito obtido no
controle de transmissão
da doença de Chagas em alguns países, para milhões de pessoas esse
sucesso não chegou a tempo. Elas já estavam infectadas. Muitas ainda não sabem
que vivem com o parasita que pode provocar uma doença crônica com prognóstico sombrio.
Para essas pessoas, o acesso ao diagnóstico e tratamento imediatos é
essencial. O diagnóstico da doença de Chagas pode ser feito na fase aguda,
principalmente pela observação direta do parasita no sangue e, na fase crônica,
por testes sorológicos
ou pela identificação de problemas clínicos decorrentes da infecção.
Para a fase aguda, pode-se até mesmo aproveitar a realização
de outros exames em sangue fresco, como
o hemograma ou a busca do Plasmodium da malária, para tentar verificar
também a presença ou não do Trypanosoma
no
sangue do paciente.
A região amazônica é um bom exemplo. Como a rede de vigilância de malária é
ampla e já está
bem consolidada na região, esse se torna um método barato e fácil, que permite
ampliar o sistema de vigilância da doença de Chagas no território. Em 2007,
Médicos Sem Fronteiras, em parceria com a Fiocruz, capacitou
rnicroscopistas para essa técnica em todos os estados amazônicos. O resultado foi a
detecção de surto de doença de Chagas em áreas onde se desconhecia sua
presença.
IMPORTÂNCIA DA SOROLOGIA
Na forma indeterminada, como o indivíduo não apresenta sinais
ou sintomas que permitam supor a existência da infecção, a sorologia acaba
sendo o
principal método diagnóstico. Não podemos esquecer que a cardiomiopatia chagásica
é a principal
causa de morte por doença cardiovascular em áreas endêmicas de Chagas. Por essa razão, MSF defende o acesso a diagnóstico rápido e tratamento
para doença de Chagas ainda no âmbito da
atenção primária.
Em relação à terapêutica, as
recomendações internacionais
têm indicado o tratamento da infecção em crianças de até 15 anos, porque
há evidências de
cura parasitológica na maioria dos casos agudos. Apesar de ainda não existir
nenhum estudo duplo-cego, randomizado e controlado que forneça maior nível de
evidência, alguns trabalhos têm demonstrado que tratar adultos na fase crônica
da infecção com
benznidazol pode retardar a progressão da doença cardíaca. Por essa razão, em
2008, MSF decidiu iniciar de forma pioneira o tratamento de Chagas em adultos em
três distritos de Cochabamba na Bolívia, onde 10% da população está infectada.
Apesar de MSF sustentar a necessidade de uso dos
medicamentos atuais, sabemos ser fundamental o desenvolvimento de
melhores tratamentos, com menos efeitos adversos, melhor
posologia e menor duração, para
facilitar a adesão. Além disso, novas tecnologias são necessárias para tornar a terapia segura
para gestantes e puérperas e permitir seu amplo uso para crianças e adultos.
Dos investimentos feitos em pesquisa para doença de Chagas, direcionou-se apenas uma pequena porcentagem dos recursos para
desenvolvimento de tecnologias de
uso imediato, enquanto a
grande maioria foi alocada para pesquisa básica. Isto reflete a necessidade de incentivos complementares para permitir que
descobertas científicas se traduzam em
benefícios diretos para a
população afetada. Em 2006, a OMS publicou o relatório da Comissão de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública (CIPIH),
no qual se demonstrou que o atual
sistema de patentes não é
suficiente para incentivar a pesquisa de doenças que afetam apenas países em desenvolvimento. Doenças
que não representem um mercado atrativo não são alvo da pesquisa e desenvolvimento.
Em 2009, no ano do centenário da descoberta
da doença, reconheceu-se
sua relevância ao ser
adicionada à agenda da Assembleia
Mundial da
Saúde, a qual reúne os ministros de Saúde dos países
membros da OMS. Uma semana antes das negociações houve recuo e perdeu-se esta grande oportunidade
para o comprometimento dos países em
reforçar a luta contra Chagas.
É fundamental avançar
na ampliação do acesso a
diagnóstico e tratamento, e na sua integração à atenção primária. O adiamento da
discussão do tema em
âmbito internacional evidencia
que Chagas não é apenas uma doença silenciosa, mas também silenciada. •